terça-feira, 23 de junho de 2015

Pensamento


“Preciso acordar antes das flores e preparar-lhes 
um banquete de pura água!”

  Catarina Fontan  (1927 – 2007)

________________________




















CiRANDiNHA "MÃOS DE CATARINA"



MÃOS DE CATARINA 
  
  
Minhas Mãos
Catarina Fontan 


Cheguei até aqui com as minhas mãos...
Companheiras tolerantes do meu aprendizado.
Enquanto colhia tolos grãos,
apontavam-me erros cometidos no passado.

Ensinaram-me tudo: do toque carinhoso
ao ato compreensivelmente valente,
como impulso impiedoso
na sobrevivência do "ser gente".

Mãos minhas tão viajantes,
embrulhadas em ternuras transparentes,
olham-se hoje nos espelhos sufocantes,
silhuetas sem retoques fluorescentes.

Essas mãos, que bordaram com suavidade
paixões marcantes da minha juventude,
são as mesmas que esquecem hoje a idade,
revivendo páginas viradas em plenitude.

Mãos que cruzaram oceanos temidos,
sem sequer cruzarem-se entre elas,
tocam hoje o meu peito destemido,
encorajando os sonhos nas favelas.

Mãos que brincaram na infância,
partilhando brinquedos e desejos
com seres roubados de fragrância,
que a vida apunhalou com despejo.

Mãos ainda ontem embalando fantasias,
já não secam lágrimas de frustração;
levo-as comigo em cantorias,
ousam reger as dores do meu coração.
(escrito de 1978 a 1981)

Mãos queridas... idolatradas,
despedem-se uma da outra ainda em vida.
Uma acredita ser o mastro do amanhecer;
a outra entardece e se faz vencida.

Enquanto assisto à triste despedida,
com uma aceno esperança por euforia...
Com a outra choro a esperança tardia...

Mão minha, sobrevivente,
ainda não abras a porta,
deixa-me ver mais uma vez o dia nascente,
colher um pedaço de vida na minha horta.

Mão querida,
quando chegar a hora da minha partida,
afaga-me, embeleza-me de flores,
vai na frente, estende-te renascida,
acolhendo-me para o doce da outra vida.

(escrito em 29/04/2007) 




II
Eda Carneiro da Rocha 


Tendo estas mãos, se tornou rainha!
Mãos obreiras, lindas, vivas,
tão sábias ao amor,
ricas em bondade,
companheiras
a vida inteira!

Mãos afagadas, beijadas,
nunca esquecidas.
Amigas, uma da outra,
apesar de meio separadas,
sempre estarão juntas
em suas louvações!

Essas mãos, Senhor,
deixai-as viver muito ainda.
Contemplar muitos poentes,
se extasiar com muitos nascentes,
bendizer a terra que ama,
as flores perfumadas com seu amor,
nessa vida onde entrevê Esperança,
com atos apenas de bonança!

Saúdo as mãos de Catarina,
suas e minhas,
amando suas mãos
com esta terna emoção!

Pudesse eu beijá-las ainda,
fazendo-o, em pensamento,
mas a distância é real...
Sinto suas mãos nas minhas,
fada encantada
do meu amanhecer,
enquanto eu viver! 




III
Gília Gerling 


Mãos que não conheço,
que nunca toquei
nem nunca aqueci.

Mãos que nunca apalpei,
que nunca abracei
nem tampouco beijei.

Mesmo assim,
São mãos que falam e eu escuto.
São mãos imagináveis para minhas retinas,
mas que as vejo movendo-se suaves e seguras.

Mãos de Catarina...
Mãos que não conheço o perfume,
mas que, pelas palavras que escrevem,
deixam rastros do mais puro e nobre jasmim.

Mãos de Catarina...
Pelo que sei, mãos que suportam,
afagam, aceitam,
sofrem, mas se superam.

Mãos de Catarina...
Mãos que nunca as vi,
mas, tenho certeza, as reconheceria em
qualquer constelação. 




IV
Helena Fontan 


As mãos da minha irmã Catarina
adormeceram as minhas angústias,
mostraram-me sal e mel... sonhos e realidades...
Entrelaçaram-se às minhas, enfrentando fatalidades.

Mãos de Catarina, persistentes na luta,
sábias e doces, hoje muito carentes,
teimosas e impacientes,
não se recolhem, lutam e estimulam
seus estímulos já ausentes. 




V
Ilka Vieira 


Foi naquela tarde de janeiro
que conheci essas mãos tão queridas.
Senti que não era um afago passageiro....
Estávamos entrelaçando nossas vidas.

Mãos de Catarina surgiam repentinamente,
transportando experiências... calmarias,
diante de turbulências tão presentes
ou mesmo na partilha em horas de harmonia.

Mãozinhas modestas, delicadas e guerreiras,
seguravam com a mesma suavidade
tanto o pão velhinho aquecido sem torradeira
como o peso das tristezas alheias em busca de solidariedade.

Mãos que adoçaram o paladar humano,
animal, vegetal, literário,
replantando amor no solo soberano,
sem sementes do impulso solidário.

Mãos poéticas que conduziram a minhas,
traduzindo metáforas à luz do meu amanhecer...
Brincavam comigo de juntar letrinhas
no belo ato de ensinar-me a escrever.

Ah, essas mãos que tanto me aplaudiram
em palco... em batalha... vencendo a agonia...
Essas mãos que jamais se desuniram,
desencontram-se agora... gerando poesia.

Resgata o sorriso de cada uma das tuas mãos, Catarina!
Não importa se uma fala e a outra emudece,
é o teu amor... o nosso amor que as fortalece...
São mãos de anjo desenhando a prece...
São mãos de Catarina retocando a VIDA! 




VI
Joelma Davinini 


Enobrece-me o direito de poetar sobre essas mãos.
Ainda meninas, as mãos de Catarina
não brincavam de roda, agarradas a outras mãos.
Tempo escasso, vida dura...
Tão finas e delicadas,
já viravam as madrugadas,
fazendo do estudo a sobrevivência,
deixando de lado as suas carências.
Quando partiram para a França,
essas mãos me acenaram dizendo:
- Estou indo colher o que plantei no entardecer!
Catarina, benditas as tuas mãos, que me fizeram resplandecer! 




VII
Lúcia Helena Paes 


Conheci as mãos de Catarina
retirando do chão uma criança adormecida,
abandonada, descoberta pela vida...
Mudou seu itinerário,
levando, lavando e alimentando a criança.
Deu-lhe carinho, um livrinho e esperança.
Aprendi com as mãos de Catarina
que precisamos elucidar nossas retinas
e estender a mão, sem fechar os olhos, em doação. 




VIII
Maria Aparecida Macedo
(Maria "Anjinha") 


Mãos incandescentes!
Mãos iluminadas!
Mãos de Anjo!
Mãos que tocam o Infinito!
Que embalam a Luz da Paz!
Que dão alívio e louvor à Esperança.
Mãos brilhantes abençoadas por Deus,
que embalam crianças, amigos, e que
acreditam no seu amanhecer.
Que sulcam a Terra, para nos dar alimento
colhido de sua horta.
Mãos que transmitem o dom de
afagar as flores do campo.

Mãos que chegam e acarinham nosso Ser.
Mãos benditas que tocam o nosso coração.
Mãos, que num pequeno gesto, nos acariciam.
Mãos mágicas e carinhosas que, juntas,
formam um elo de amor para nos amar.
São estas as mãos de Catarina! 




IX
Marise Ribeiro 


Mãos áureas luzidias... Mãos de Catarina...
Iluminando ainda da vida a ribalta...
Detenham-se!... Não é hora de virar a esquina
nem de abandonar a poesia que as exalta.

Mãos viajantes... Mãos de Catarina...
Através da arte, conduzindo um mundo...
Voem!... Deixem o entardecer no alto da colina,
ainda não é hora do silêncio infecundo.

Mãos purificadas... Mãos de Catarina...
Banhadas em versos de enlevado encanto...
Cantem!... Soem os acordes da voz da menina,
dela... doce Catarina, que as venera tanto! 




X
Martza Splendore 


Doces, mas educadoras,
as mãos de Catarina se fizeram alertas
ao longo da vida de que não me fiz autora.

Perdia-me nas trepidações da juventude,
Mas as mãos de Catarina resgatavam-me
repletas de decepções, mas salvando minhas virtudes.

Mãos de Catarina me fizeram amadurecer...
Escreveram no livro da minha vida:
Nunca é tarde para a si próprio merecer! 




XI
Regina Coeli Rebelo Rocha 


Tempo de nascer...
Tempo de envolver...
Tempo de falar... Tempo de calar...
Tempo de morrer...

Na esfera da Vida,
Tudo tem seu tempo
E sua razão de ser
Na chegada e na partida....

Ouvidos que ensurdecem,
Olhos que ficam cegos,
Vozes que emudecem,
Pernas que não mais caminham
Juízo que embrutece
Mãos que se desalinham...

O que se dirá das mãos
Que um dia se uniram
Para o aplauso eloqüente
E, hoje, se apartam... silentes?...

O que se dirá das mãos
Que tanto se encontraram
Na ponta dos abraços
E, ora se vê, se desabraçaram?...

O que diria a mão hoje calada,
Tão cheia de histórias um dia...
Protagonista de enredos,
Reveladora de segredos...

E a outra, parecendo adormecida,
Levanta-se de sua timidez,
Consola a voz emudecida,
Apresenta-se, é a sua vez...

É ela, agora, quem dá as cartas
Num sem jeito e com vagar,
Num respeito à outra, muda...
Balbuciando em seu iniciar...

Mas, a Vida deve continuar,
Independente das mãos,
Independente do tempo,
E no coração... se apoiar...

Um coração meigo e sábio,
Que sem ter pés nem mãos,
Atravessa ares e mares
E vem beijar outros corações...

Corações ávidos de carinho,
Que amam afagos que vêm pelo ar,
Que se sentem abraçados, queridos...
... ainda que sem mãos para os estreitar...

Entendamos as mãos, tão amigas,
Que, um dia, param pra descansar
A de Catarina Fontan... adormece...
Não se sabe se irá acordar...

Não importa, mãozinha adorada,
Agradecemos pelo que nos deste...
Estamos velando o teu aquietar...
Agradecemos por tudo que fizeste...

A outra, a que pouco liderou,
Velará por sua irmã, dormente,
Qual mãe prestimosa e querida,
Que vela o sono da gente...

Cuida-te, Catarina Fontan,
Guerreira amiga, tão destemida!
Ergue o teu espírito, rainha do élan,
Porque o teu valor vem da tua Vida! 



XII
Ruth Splendore 


Ricas e generosas mãos
ensinaram-me a ser mãe,
apontando os erros sem negar o perdão.

Quando as luzes se apagavam,
as mãos de Catarina se faziam presentes,
iluminando meus olhos displicentes.

Benditas mãos da amiga e escritora Catarina,
que tantas mãos salvaram,
incentivaram e lágrimas secaram... 




XIII
Thais S. Francisco
("beijaflor") 


Suas mãos, companheiras tolerantes
anos a fio, dependendo uma da outra
para, juntas, louvarem a Deus
por estarem ali, sempre a compartilhar
dos momentos de aprendizado...

Juntas aplaudiram as conquistas,
juntas enxugaram lágrimas,
ora de felicidade, ora de dor...
Juntas colheram os frutos vindos
do amor, da compreensão, da união..

Suas mãos, companheiras inseparáveis
nos momentos de divina inspiração...
Uma aparava o papel, a outra escrevia
poemas de amor, de vida!..

Suas mãos, divino instrumento
que amparou, acolheu, acarinhou,
ofereceu, doou e recebeu, hoje ainda
continuam inseparáveis companheiras,
talvez agora uma necessitando da outra
o amparo do esquecimento de seus movimentos,
mas... estarão como sempre estiveram...

Juntas... companheiras inseparáveis,
uma acarinhando a outra... e a outra...
fazendo a suave companhia,
mesmo que silenciosamente,
mas sempre presente!..

Uno agora, Poeta Catarina,
minhas mãos às suas
para receber da Mestra
o aprendizado de vida,
de perseverança e da
esperança jamais tardia,
pois esta será sempre a última
a se despedir!...



Livro de Visitas do site "Sob a Luz da Poesia", de Ilka Vieira
(Ano 2007)




CiRANDiNHA "VIDA PELAS FRESTAS"


















Vida pelas Frestas 
Catarina Fontan

Meus olhos teimavam em atravessar as frestas,
Pareciam buscar a vida repousando à luz do dia;
Olhos silenciosos, respeitavam a paz da sesta,
Mas a vida, tão esperta, apenas fingia que dormia...

Estaria a vida sonhando acordada
ou planejando uma nova escapulida?
Veste-se de branco e coloca-se na ponta da escada
Pronta a nos empurrar com sua crueldade homicida...

Não há como condenar a vida por tantos crimes!
Brinca com sorte, com tempo, com gente...
Joga duro, bate no peito, afirma que não mente...

Quem é a vida, uma mulher inconseqüente?
Não, a vida é uma menina simples e veloz,
interrogando-nos pelos desnecessários nós.





Ilka Vieira

Percebi que alguém me olhava pelas frestas.
Senti-me despida, invadida, desrespeitada.
Nem porta, nem parede, eram treliças se fazendo floresta.
Em mim, nem céu, nem mar, nem lua enfeitada.

O olho curioso persistia e me inibia...
Especulava o quê, eu não sabia...
Buscava quem em mim, eu interrogava...
Se tentava roubar de mim a alegria, essa não achava.

Naturalmente, trocamos de lugar...
De mim, apenas o meu olho entrevia,
Mas do lado de cá pude perfeitamente enxergar:
Era a Vida censurando minha melancolia...




Eda Carneiro da Rocha

Pelas frestas, vi um permeio de sol.
Abri as janelas de minh´alma.
Corri lá fora!
Era ele, o Sol, que despontava e me dava
Bom Dia!
Sê Feliz, agradece, numa forma de oração
que só sentem os que são irmãos!

Agradeci, repensei, vi-o belo, acordando,
se espreguiçando, numa forma de "Amor"
que só a natureza sabe se impor.

Vim, então, aqui, dizer do muito que te quero,
da falta que me fazes,
deste amor que venero
que não conhece a Eternidade.
Por certo estamos juntas, aqui ou aí,
neste sentimento, que me acompanha, com suavidade
deixando o pranto na mão da saudade 


   

Regina Coeli  Rebelo Rocha

Muito eu te procurei por cada canto,
Sonhei-te forte Luz a iluminar
A minha escuridão, vazia de tanto...
À procura de ti pra se enxergar...

Dias e dias... tu não sabes quanto,
Minha espera sagrou o meu altar
Em que rezas eu fiz pra todo o encanto
Se encher de brilho intenso ao teu chegar...

Deixei a porta aberta a te aguardar
Me  clarearias mais do que o luar,
Com raios embebidos em serestas...

A Luz plena não veio, eu a chorar
Sorri pra Vida, Mãe a me ensinar:
sua claridade pode entrar por frestas...  




     
Thais S Francisco
   "beija-flor"

Envolta na melancolia,
tranquei-me em quarto escuro.
Sem querer saber se era noite ou dia
deixei-me ficar, como se da noite eu fosse par.

Da razão, perdi-me no tempo.
Angústia, medo, dor, aniquilam minh'alma
Que se debate nesta solidão,
em busca da luz que poderia brilhar,
guiando meus passos neste meu caminhar

Mulher esperta, filha menina, mãe leoa!
Ouço de longe, a Vida sussurrar: 
- Abre os olhos, repara que pelas frestas
O brilho da Vida te chama 
Vem Viver!

Tímida e medrosa, vou abrindo meu coração
deixo fluir a essência do "Eu" absoluto
que sabe brincar com a sorte, caminha forte
não mente, joga duro se preciso for...sabe viver!

O Universo me interroga:
- Onde te escondes, brava guerreira?
Não vês que pelas frestas desta porta trancada
infiltra-se a luz, dizendo que aqui fora 
A Vida te espera? Vem!!?!

Banho-me na luz 
que, pelas frestas da porta e das janelas,
iinvade meu quarto, tirando-me deste insólito escuro.
Ergo-me com fé, abro vigorosamente esta porta
e, saio para a Vida, que me espera para Viver! 

     



Frestas Douradas 

Maria Aparecida Macedo
"Maria Anjinha"

Repousando, em meus travesseiros,
olhei pelas frestas da janela.
Um raio de sol entrava, pela  pequena fresta, 
trazendo brilho e paz de vida plena,
quando me dei conta que era manhã de primavera.

Eram raios dourados, imantando todo 
o nosso Mágico Jardim.
Todas as flores coloridas, sob o raio
de luz dourado, matizando-as todas.
Tudo isso me inspirava, sob a fresta da minha janela.

E, neste dourado, senti-me a pessoa mais feliz,
podendo olhar, apreciar, a beleza da natureza,
feita pelas mãos de Deus.
As frestas de nossa vida, onde em cada dia
podemos orar e agradecer,
por  participar de tudo de belo que existe.

Nesta fresta dourada, vi,
entrando, pelos raios de luz,
 um Anjo radiante e brilhante.
Eras tu que me davas as mãos,
me fitando  com seu doce olhar,
na magia desse eterno caminhar!...




     

Martza Splendore

Entre mim e a vida persistiu um grande desencontro.
Enquanto quase dela me despedia,
marcava por meio de tentativas o seu ponto.

Eventualmente, mandava-me flores,
mas desacreditava, defendia-me imbecilmente.
Colocava em meu caminho novos-falsos-amores.

Vida sem retrato, alma sem vida...
Sentimentos amarelados, buscando sonhos não vividos...
Luta aparente, vã luta tão demente...

Exausta, parei de correr atrás de mim,
deixando entrar o que parecia ser o fim.
Impulsionaram-me, pulei do trampolim...

Do outro lado, era outro tempo.
Fazia sol e plantavam-se flores...
As manhãs eram despertadas por pintores.

O mundo era o mesmo, mas eu, não!
Via a vida pelas frestas,
cegueira louca de quem enxerga
apenas o que tem na própria testa. 
   
  
    

CENAS
Gilia Gerling

Vemos a vida que queremos,
através de frestas emprestadas e inventadas
no nosso cotidiano real ou imaginário.

Somos frestas, para sonhos de terceiros
enquanto  o sol nos empresta seu brilho
e assim, iluminamos almas sedentas de luz.

Somos frestas, para desejos enrustidos
e sentimentos abatidos que apenas
pedem para serem ressuscitados.

Queremos frestas, para melhor ver nosso
próprio rosto, que nem sempre sereno e doce
reflete a delícia de viver.




DUETO: Ilka Vieira & Catarina Fontan




OBRIGADA PELAS FLORES!

I

Ilka Vieira



Tantos anos se passaram...
Tantas recordações sobreviveram...
E as mágoas se transformaram?
Meus sentimentos, não morreram?

Eis aqui doces palavras
alinhadas num belo cartão,
mas não respondem às dúvidas
que deixaste no meu coração.

Da tua partida, fiz-me decidida...
Do teu silêncio, fiz meu canto liberto...
Do nosso amor, fiz-me ressarcida,
provando-me que, com você, vivia no deserto.

Hoje, chegas tão próximo enviando-me flores,
mas não alcanças a proximidade que há entre nós.
Arranca-me um vago sorriso sem furta-cores
e a certeza de que flores não desatarão meus nós.


OBRIGADA PELAS FLORES!



II

Catarina Fontan  


Que pena, nada entendeste!
Quando te enviei flores,
quis sanar as nossas dores,
cessar os teus gemidos,
que ficaram embutidos
nos resquícios de remorso
que ainda guardo comigo.

Cheguei muito mais próximo,
embora não tenhas visto.
Confundi-me, tive dúvidas...
... quase arrisquei!
Agora tenho certeza:
não és, nem foste o que pensei.

Há quem receba minhas flores
sem orgulho e rancor.
Tantos anos se passaram
e nada aprendeste sobre o amor.

Catarina Fontan & Ilka Vieira - Amizade-luz de muito longe



















Conheci Catarina Fontan em 1965.

Eventualmente, aos sábados, meu pai levava-me muito cedo para passar o dia na casa da querida amiga Martza, que se mudara para um apartamento no bairro de Copacabana, de frente para a praia. Sempre costumava ligar antes confirmando se a amiga e sua família estariam em casa, mas naquele sábado fugi à regra; no caminho, meu pai me perguntou se havia ligado; embora disso houvesse me esquecido, apliquei uma mentirinha, confirmando. Quando entrei no prédio, meu pai foi embora certo de que eu estaria, como sempre, segura na casa da amiguinha, mas o porteiro me informou que a família não se encontrava em casa. Pensando que Martza e sua mãe  estivessem na praia, ousei atravessar a rua e depois de procurá-las sem sucesso, perguntei a uma senhora se poderia sentar-me ao lado dela, até que localizasse minha amiga.

Extremamente delicada e percebendo minha pouca idade, deu-me muita atenção, no que me senti protegida. Quando me aproximei, ela estava escrevendo apoiada sobre um livro; ao lhe perguntar sobre o que escrevia, disse-me que estava fazendo poesia. Perguntou-me se gostava de poesia e eu lhe disse que gostava muito; contei-lhe, inclusive, que já havia participado de alguns concursos no colégio. Ela lamentou por não ter outra folha disponível para que eu também escrevesse e, achando um palito de picolé, escrevi um poema na areia. Aquele poema, ela me fez escrevê-lo na contracapa do seu livro, dedicando-o a ela.
As horas foram passando, esqueci-me da amiga e nossa conversa foi se tornando cada vez mais agradável, até que a senhora, com muita habilidade, fez-me confessar a minha mentirinha, acabando por me levar em casa. Melhor ainda, convenceu meu pai a conversar comigo, sem me advertir.
Fiquei com o número do telefone dela e ela com o meu. Pensei em lhe telefonar na semana seguinte, mas não foi preciso; ela me ligou fazendo um convite: queria que eu fosse lanchar na casa dela, para fazermos poesia juntas. Meu pai permitiu e, daí em diante, meus passeios com a amiga Catarina Fontan passaram a ser o melhor dos prazeres.

Passávamos muito tempo sem nos vermos, mas não ficávamos sem nos telefonar. Um dia, se despediu, porque ia se mudar para Brasília, onde havia comprado uma casa; parecia muito feliz. Passamos a nos corresponder por cartas, troca de poemas, cartões postais enviados por ela em cada uma das suas viagens, relatos sobre nossas vidas...
epois de muitos anos sem vê-la, telefonei-lhe comunicando-lhe que perdera meu pai e, depois, minha mãe. Conversamos muito e por fim ela me disse que eu não me considerasse órfã e, sim, definitivamente adotada por ela.

Recentemente, Catarina esteve no Rio de Janeiro novamente se despedindo: estava se mudando para a França. Jantamos juntas e, embora não demonstrasse nenhuma tristeza, conhecia-a tanto que senti através do seu abraço que Catarina estava se despedindo do Brasil, de mim, da vida!
Depois que chegou à França, esteve ainda mais próxima de mim:  telefonava-me praticamente toda semana, parecia feliz. Finalmente iria residir em Colmar, cidade francesa à qual se referia como "Jardim da Vida". Comprou a casa de um artista plástico italiano que, segundo ela, era apenas uma casinha (modéstia habitual de Catarina). A única fotografia que me enviou da casa, fiquei sabendo após a sua partida, era de um cantinho muito simples, fundos de um depósito, onde o tal artista plástico deixou guardada sua coleção de tintas usadas.

Catarina jamais enviaria fotografia da realeza que compunha a casa, tinha receio de que parecesse ostentação, mas insistia muito que a visitasse... que fosse morar com ela em Colmar.
Catarina não era fisicamente vaidosa, trajava-se com modelos mais tradicionais do que propriamente editados pela moda. Na face, apenas um batom rosado. Usou durante toda a sua vida um único perfume: essência de rosas brancas, o que também marcava a sua presença com simplicidade e aroma agradável.  Doou suas jóias em favor de uma instituição de velhinhos no estado de Sergipe, restando-lhe apenas um relógio de pulso, um par de brincos e um anelzinho de dois pequenos brilhantes presenteado por seu pai.

Catarina lecionou para crianças durante sua juventude, mas, na verdade, ela lecionou durante toda a sua vida a disciplina que mais requer sabedoria emocional: lecionou "Vida"!

Catarina nasceu em Strasbourg e morreu em Colmar (cidades vizinhas)

Catarina Fontan VIVE!!!


Ilka Vieira

Sobras Inteiras
























De tudo,
alguma folha caiu da árvore
sobre a minha dormência.
Alguma flor abriu-se,
retornando-me à inocência.

De tudo,
alguma caminhada interrompida
tornou-me renascida
sem que fosse parida
ou que precisasse morrer
para enxergar a vida.

De tudo,
alguma descoberta inexata
fez-me aceitar a sonata,
compreendendo as divergências
terminantes em harmonia
por simples simpatia.

De tudo,
alguma passagem me concedeu a vida
e, elemento da minha própria torcida,
aplaudi-me com bravura,
reparando a rachadura
que o silêncio não se levantou para ver.

De tudo,
fiz dos meus escritos
os sonhos mais bonitos,
os ombros mais consistentes,
as horas mais absorventes,
as histórias mais verdadeiras,
as horas mais Catarineiras
que a velhice teme em se aproximar.

De tudo,
a alguma soma de idade cheguei.
Embalei o tempo, fiz minha única lei.
Não morri antes e nem tentei,
mas se tivesse que morrer agora,
não deixaria que a vida me colocasse para fora,
mas que a morte desistisse um pouco mais de mim.

De tudo,
não planejei despedida,
se faço de cada partida
um recomeço de vida.


Catarina Fontan
(Manuscrito datado: Dezembro 2005)

Aceno de Sentimentos























Não sirvo pra ti, sou livre demais
Quando findar o outono estarei distante
Sou uma gaivota de vôos florais
Não me prendo ao amor sufocante

A vida se traça em triste metade
Como posso conhecer todas as flores
Acorrentando minha révora da eternidade?

E esse abraço que recuso e tanto reclamas
Parece enfraquecer a tua alma inata
E essa lágrima sem gemidos que derramas
Parece querer compor uma sonata

Vou levantar sem ruído ofegante
Não me acompanhes por nós, te peço
Não fales, não te movas, não cantes...
Não chames, não olhes, não me despeço

Não me queiras bem nem mal, admira-me!

Catarina Fontan


Ser Jovem




Ser jovem,
É ver o envelhecimento da pele
Com olhos de juventude.
É sentir-se experiente o suficiente
Para não querer voltar no tempo.
Enquanto sonharmos, enquanto acreditarmos
No que ainda podemos fazer pelos outros
E por nós mesmos, estaremos jovens!
A melhor idade para sentir-se jovem,
É aquela que já temos todas
Ou quase todas as respostas.

Catarina Fontan
(Manuscrito datado: Outubro 2004)

Pensamento




















A felicidade é um bem que se conquista
com a sabedoria... com os bons sentimentos...
com as mãos adoçando ferramentas... 
com passos lentos pela estrada estreita da vida.

(Catarina Fontan - ago.2002)

Nada a Fazer
















De nada me valeu nosso passeio sensaboria.
Parti-me em pedaços pelo monólogo inesperado.
Olhavas meus pés passo a passo e os seguia
Eu olhava teu passo de vagão puxado.

Preparei-me para esse encontro por tantos dias
No entanto não durou nem uma hora
Meu olhar tentava abrir o teu sorriso,
enquanto o teu acenava indo embora.

Levei na bolsa um lenço perfumado
prevendo tuas lágrimas de arrependimento
teu semblante era rochedo já habitado
minha estrada fez-se estacionamento.

Esbarrei na tua mão, falsa desatenção
Talvez, tentativa de última magia
Encontro de peles acelerando o coração
Recolheste a sensibilidade, a diplomacia.

Saíste como um leão atrás da caça
Acompanhei tua silhueta até desaparecer
Sentei-me só no banquinho da praça
Buscando forças para te esquecer.


Catarina Fontan
(Manuscrito datado: setembro 2000)

Olhar de Juventude
























Sempre tenho uma cadeira de balanço na varanda, mas ao contrário de resignar-me através dela com a velhice (o que é muito comum), crio viagens as quais os transportes coletivos estão incapacitados de fazê-las. É preciso sentir desejo de ficar só para conhecer a profundidade do próprio "EU". Ele já é uma grande comunidade e se não nos proporcionarmos o mais absoluto silêncio, não conseguiremos ouvi-lo. É preciso criar um canal de comunicação entre os nossos "EUS" e a natureza; deixar que se emocionem entre si, que perguntem... que respondam... que contestem... que se entendam...

Há nessa comunidade interior "EUS" que jamais sentiram o perfume das flores, jamais permitimos!
Outros que gritam... choram e nem sabemos porquê, nunca os interrogamos! Há aqueles que dormem continuamente por lassidão... desistiram!

O balanço cadenciado da cadeira vai nos permitindo visitar cada "EU" tão carente... esquecido... trancado... Inclusive aqueles que se mostram mais rebeldes, que quebram paredes e tetos.... que chegam à superfície e nos deixam irritadíssimos no cotidiano, tornam-se mais harmônicos quando "os olhamos".  Quantos dos nossos "EUS" já nos pediram "um forte abraço"... uma cantiga de ternura?

Repentinamente, os meus olhos vão pintando o céu em tom de anil; o riacho reciclando de leveza suas águas atormentadas; o vento assobiando, fazendo-se ar puro, brincando de correr sem freios fora e dentro de mim...

A cadeira de balanço "aterrissa"... eu não; a paz do "EU" em mim é plena!
Desfaço a mala, mas não guardarei nas gavetas o seu conteúdo; levar-me-ei inteira!
... E quando a velhice bater à minha porta, saberei recebê-la com olhar de juventude.

Catarina Fontan
(Manuscrito datado: Maio 1989)

Fartura de Ilusões























Dou-me ilusões com fartura
Permito que transbordem meu coração
Algumas brincam comigo,
outras, ilusoriamente pressentem
que também sei brincar

De nada me valem as ilusões perdidas,
conservo-as, porque se me deixam feridas,
dão-me igualmente experiências de vida

Não me roubem as ilusões!
Tenho-as em quantidade, posso doá-las
Não me tire as ilusórias soluções!
Tenho-as como fé, posso ampliá-las


Catarina Fontan
(Manuscrito datado: Setembro 1979)

Reencontro da Alma



















A felicidade era plena! Denunciei-me quando abri a janela e perdi a timidez diante do gigante sol. Não estava sendo especulada, mas se o estivesse não me envergonharia; acabara de descobrir-me bela, romântica, preparada para correr ao espelho e tocar cada parte da minha face, do meu corpo,  respirar transformação e sucesso!

Eu acabara de renascer e já dotada de tanta maturidade, mas onde... O que fiz dos meus restos mortais? Deixara-os provavelmente sob a noite fria passada ou pendurados ao meu  alcance? Nunca  nos desfazemos completamente do que fomos, disso sei eu, mas... se já estava realizada  e determinada...  É como uma peça de roupa rasgada... conservá-la, se já temos outra nova,   para    quê? Será assim para tudo? Não, claro que não!

Ainda ontem, convidei a velha amiga Rebecca para um chá informal das seis horas, sentia-me com vontade de "falar pelos cotovelos". Ela não aceitou de imediato, mas também não recusou, precisava pensar. Ora, que tanto essa gente pensa para ser feliz? Como já passava das sete, convidei uma nova amiga, Gilda,  para o chá das nove. Gilda é muito falante e certamente não me deixaria  falar, mas quem sabe estaria precisando falar mais do que eu? A nova amiga foi pontual e  quando saboreávamos o chá, Rebecca telefonou-me já se dizendo a caminho. A princípio, confesso, fiquei irritada, afinal  Gilda surpreendera-me com seu ouvido tolerante; deixara-me falar sem me interromper em nenhum momento, e a presença de Rebecca iria me tirar a espontaneidade. No entanto, contive o impulso de descartar Rebecca e optei por desfrutar das duas, era o momento propício para entender o que eu queria de mim mesma. Foi uma noite agradabilíssima, falamos sobre as velhas e as novas  histórias. Elas puderam falar, afinal; eu aprendi a ouvir somente quando apenas precisava falar.

Cada passo em direção à conscientização é sucesso... é a lucidez da maturidade!
Acabo de abrir a janela e sinto a noite fria tentando cobrir o que se foi de mim. Ah, mas não vou me deixar ao relento, quero-me inteira, com todas as covardias abraçando-se a essa nova coragem que muito se parece com intempestividade, autoexibicionismo... Quero chorar e por mim mesma secar minhas lágrimas de doçura ou de bravura.

Tanto refleti, e não me decidi... e a noite se foi, mas eu fiquei aqui dentro e lá fora... metade para cada lado, tão partida, que voltei a envergonhar-me de mim mesma. Abri a porta e fui buscar a minha autenticidade... Lá estava ela, tímida e apreensiva, esperando pelo meu chamado; feia e fria... quase assustadora, mas denunciando-se interessada em me aceitar!


Catarina Fontan
(Manuscrito datado: maio 1971)



Pessoas























Ah, como é bom reunir pessoas diversas
Olhar para todas e para cada uma delas
Saber de suas expectativas em conversas
Sentir suas verdades pulando pelas janelas

Ah, como é humano compreender as diferenças
Adoçar um coração amargo em tristezas
Apontar a vida para a alma que planta doenças
Poder falar de amor ao semi-Deus cego de delicadezas

Ah, como é vasta de encantos essa raça humana
Tolos caminhantes de passos extensos e sem freios
Quando o tesouro está ali, no grande colo, terra plana
Um por todos, todos por um , nada alheio...

Eu eu, tanto queria transformar a minha fantasia
Unindo almas, corpos e desejos com ternuras
Lapidar corações de pedra que vivem a maresia
Revelando-lhes que a vitória, a vida dá sem bravuras.

Catarina Fontan
(Manuscrito datado: Abril 2002)


Meu Galo Chico


Óleo de Catarina Fontan




















     Acordei preguiçosa! A casa estava vazia de frutas e verduras, o corpo ensoado, a alma infensa...
     Quase perco o horário da feirinha! Comprei aipo, couve, belas cebolas.... Algumas barraquinhas, já desarmadas,  despediam-se com a chegada da chuva fina. Como gosto da chuva, dou-lhe a face e sinto que ela me lava a alma por cortesia.

     Percebi a aflição do jovem alagoano que toda semana levava seus pintinhos para vender na feirinha. Eu não aprovo isso e restava-me rezar pelos pintinhos que dalí saíam com vida. O rapaz estava nervoso, gritava com o pintinho na mão, porque ele sobrara entre tantos e, conciliado à chuva, parecia atrapalhar seus planos. Aproximei-me do alagoano e ofereci ajuda, mas ele queria mesmo era vender o pintinho, porque a caixa de papelão se desfizera com a chuva. Negou quando lhe perguntei se queria doar o pintinho e então fui contra os meus princípios para salvar o indefeso bichinho da irritação daquele comerciante. Após pagar pela ave tão criança, determinei que esqueceria aquele momento e me envergonharia de relatar aos meus amigos o que fizera. Coloquei o pintinho dentro do sutiã para protegê-lo da chuva e fomos com destino à nossa casa.

      Precisei ter uma séria conversa com meus outros companheiros, a gatinha Virgínia, o cãozinho Banga e a  arara Sereia. Afinal, todos precisariam respeitar o infante Chiquinho, assim passei a chamá-lo.

     A primeira semana foi muito difícil. Chiquinho tornou-se alvo de brincadeiras desajeitadas de Banga e Virgínia, mas acabaram se entendendo. Ele dormia comigo na cama e precisei me acostumar a adormecer com a lâmpada do abajur acesa, pois piava muito como se me confessasse o seu medo de escuro. Virgínia ficava com insônia pela lâmpada acesa, mas Chiquinho sonhava...

    Viciou-se no meu ombro e viciei-me em andar todo o tempo pela casa com ele ali. Joelma, boa vizinha e amiga, confeccionou-me uma veste plástica, evitando que eu trocasse de roupa cada vez que Chiquinho me sujasse ao atender suas necessidades fisiológicas. Cheguei a pensar em fraldas, mas como fazer fraldas para um pinto? Aos poucos, Chiquinho entendeu que precisava descer do meu ombro para viver normalmente como um galo, mas nunca abriu mão de dormir na cama.
    Um dia, chamou-me para uma conversa adulta, fazendo-me ver que já havia se tornado um galo e não ficaria bem ser chamado de Chiquinho. Emocionava-me ver aquele galo tão grande, cobrando aconchegos da gata Virgínia. Ela não podia se deitar encolhida, porque ele queria se abaixar sobre ela e a bicava com carinho até que ela cedesse.

    A associação dos moradores da rua visitou-me com um abaixo-assinado para que me desfizesse do galo Chico, pois ele cantava insistentemente das 05:00 às 07:00 horas. Como eu poderia dizer a um galo feliz que deixasse de cantar? Certamente me repondería que preferiria morrer. Mas que diabo me fez acreditar que poderia residir em Brasília, cercada de mansões, de corações "tubarescos", com um galo tenor?
   A princípio, deixava fechada a janela do quarto, evitando que o meu Chico fosse cantar no quintal, mas ele cantava tão alto que ultrapassava as paredes. No auge do meu desespero por não achar uma solução, Chico surpreendeu-me roçando suas penas em minhas lágrimas e, enquanto lhe dizia o quanto era dócil, pensei ter achado a solução. Visitei cada um dos moradores da rua com meu Chico no colo; precisava sensibilizar aquelas pessoas com a ternura que ele tinha para oferecer. Felizmente, todos me deixaram entrar, falar e mostrar as gracinhas que meu galo era capaz de fazer. As crianças se apaixonaram, os adultos o acariciaram, os frios se deixaram conquistar e Dona Aurora, uma idosinha surda, disse que ele nunca a incomodara.  Desde então, Chico passou a ser venerado.

    Quando viajei com a amiga Olga para a Europa, Joelma escreveu-me dizendo que meu Chico estava doente: não cantava, não comia, não brincava... No mesmo dia, comprei passagem e reforcei de amor aquele abraço que marcava uma das mais belas etapas da minha vida. Já no portão, enquanto retirava as malas do táxi, Chico voou em direção ao meu ombro, onde já não cabia; espremendo-se, aninhou-se e cantou às 17:00 horas, saudando a minha chegada. Mal sabia ele, dentro da mala havia milho italiano para o meu dócil tenor...

    Num domingo, o jardineiro Joaquim pediu-me o Chico emprestado para casar com sua galinha Diva, que residia em Sobradinho. Enquanto conversávamos, Chico me olhava inquieto; parecia pedir-me que não negasse... Sensibilizou-me, convenceu-me...  Fui levar meu galo a Sobradinho naquele mesmo dia e pude sentir sua alegria, enamorando-se de Diva. A jovem galinha mostrava-se receptiva e cedeu a ele de imediato. Chico não foi animalesco: rodeou, cortejou e, como havia aprendido lições de amor, foi delicado ao desvirginar Diva. Joaquim ficou impressionado com a educação de Chico, que se comportara como um cavalheiro; não abandonou Diva, ali permaneceu por um bom tempo como se estivesse lhe falando do seu amor à primeira vista. Quando fomos embora, percebi que meu galo estava mesmo apaixonado; entrou novamente em depressão e, na tentativa de alegrá-lo, passamos a segunda-feira pintando o seu retrato. Entre tintas e pincéis, nosso diálogo era uma retrospectiva de verdadeiros sentimentos. Percebi que Chico não melhorava, dizia-me com os olhos que preferiria morrer a optar por mim ou por Diva.

     Na terça-feira, acordei com o vento batendo na janela. Chovia muito. Virgínia aquecia-se entre meus pés, mas meu amado Chico não havia cantado. Estava adormecido para sempre ao meu lado.

Catarina Fontan